terça-feira, janeiro 29, 2013

 


O poeta é um guardador
 
guarda a diferença
guarda a indiferença
 
no incerto
guarda a certeza da voz
 
 
Ana Hatherly - O Poeta É um Guardador


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sábado, janeiro 26, 2013

 

Não perguntem nada: nós estamos dentro
Do aro de frio, no frio do muro,
Tão longe da feira do Tempo!
Não perguntem nada.
Nós estamos mudos.
 
Puseram açaimes nas ventas do vento,
Ergueram  açudes nas águas do mar...
Não perguntem nada: nós estamos dentro,
Ou fora de tudo.
Não perguntem nada.
 
Tumulto na estrada? O bicho na concha.
Miséria na casa? O farol na montra.
Não perguntem nada, não perguntem nada:
há sempre gládios
a ríspida sombra.
 
Não perguntem nada: as razões são longas.
Não perguntem nada: as razões são tristes.
Não perguntem nada: nós estamos contra.
E talvez perdidos.
E talvez perdidos.


David Mourão-Ferreira  - Litania de Sombra

 
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terça-feira, janeiro 22, 2013





A flor tem linguagem de que a sua semente não fala.
A raiz não parece dar aquele fruto.
Não parece que a flor e a semente sejam da mesma linguagem.
Retirada a linguagem
a semente é igual a flor
a flor igual a fruto
fruto igual a semente
destino igual a devir,
E era o que se pedia: igual.
 
 
Almada Negreiros - Poemas
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sexta-feira, janeiro 18, 2013

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!
 
Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.
 
Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.
 
Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!
 
Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!
 
Miguel Torga - Não Passarão
 
 
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terça-feira, janeiro 15, 2013




A trinta e cinco reis custa a pescada;
O triste bacalhau a quatro e meio;
A dezasseis vinténs corre o centeio;
Do verde a trinta reis custa a canada.
 
A sete, e oito tostões custa a carrada
Da torta lenha, que do monte veio;
Vende as sardinhas o galego feio
Cinco ao vintém; e seis pela calada.
 
O cujo regatão vai com excesso,
Revendendo as pequenas iguarias,
Que da pobreza são todo o regresso.
 
Tudo está caro: só em nossos dias,
Graças ao Céu! Temos em bom preço
Os tramoços, o arroz e as Senhorias.
 
 
Paulino António Cabral (Abade de Jazente)
Amarante (1719-1789)

 
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sexta-feira, janeiro 11, 2013

 
                                                                                                                                              
 
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Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só o azar, é natural.
 
Oh, c'os diabos!
Parece que já choveu...
 
 
Fernando Pessoa - 29-3-1935
 
 

segunda-feira, janeiro 07, 2013

 
 

 
É preciso saber por que se é triste
é preciso dizer esta tristeza
que nós calamos tantas vezes mas existe
tão inútil em nós tão portuguesa.
 
É preciso dizê-la é preciso despi-la
é preciso matá-la perguntando
porquê esta tristeza como e quando
e porquê tão submissa tão tranquila.
 
Esta tristeza que nos prende em sua teia
esta tristeza aranha esta negra tristeza
que não nos mata nem nos incendeia
 
antes em nós semeia esta vileza
e envenena ao nascer qualquer ideia.
É preciso matar esta tristeza.
 
 
Manuel Alegre - Soneto em Praça da Canção